- Fabiano Lana
Bingo! Os anos 80 nos tornaram menos malas

Década a década no último século, cada geração enfrentava os pais com suas doses de rebeldia e chacota contra os mais velhos. Valores um a um eram derrubados: família, casamento, religião, pátria. No Brasil esse sentimento de liberdade teve seu auge ali no meio dos anos 80 quando vivemos uma confluência de volta da democracia, tempos pré-AIDS, pós-pílula e irreverência na música pop. A gente tinha essa impressão de que podíamos quase tudo e logo poderíamos tudo. Era uma festa.
Mas durou pouco. Três décadas depois voltamos a ter todo o cuidado com o que falamos. Vivemos cercados de cautela, ponderação e medo de patrulha. Qualquer ato fora dos trilhos gera uma polêmica sem fim potencializada pelas redes sociais. Há menos riso e mais fúria. No final, após um excesso, a gente tem de pedir desculpas pelo erro, enfiar o rabo entre as pernas e submergir. Assim o processo civilizatório segue seu caminho. “O Processo Civilizador” no sentido daquele maravilhoso livro de Norbert Elias que sacou que do ponto de vista histórico a humanidade segue em repressão progressiva aos instintos e ao outro. Continuamos animais, mas cada vez mais encarcerados.
Não que deixemos de ser perversos. Continuamos. Mas os atos de iniquidade voltaram a ser mais discretos, no escurinho da internet, ou então estamos dispostos a enfrentar enorme celeuma e desonra pública. Para mim certos candidatos com a língua solta inclusive são uma relembrança mofada dos 80, só que naquela época ninguém iria dar muita bola, pois podia tudo. Ou quase tudo. Era um período de muito humor e de não levar nada tão sério assim.
Sim, era comum aos pais chegarem com a revista Playboy ou outras de pior fama em casa para mostrar ao filho e a toda família (no meu caso, nunca, mas discutimos os atributos de Cláudia Ohana no jantar na casa de um amigo, tudo muito natural...). As apresentadoras infantis se apresentavam seminuas. Nas praias, nos clubes, nas lajes, nas cachoeiras os biquínis começaram a diminuir progressivamente até virarem literalmente um fio dental e por aí ia. Parecia que esse era o espírito do tempo. A história rumo à liberação total. E com uma trilha sonora de rock brasileiro que com seus três acordes e pouca poesia deram uma arejada ao panorama musical frente à elitizada e já embolorada MPB. Do lado de fora havia o eterno combate à inflação e nós éramos os fiscais do Sarney a fechar supermercados que aumentavam os preços.
Esse é o contexto de Bingo. O filme que é uma semibiografia de um dos atores que faziam Bozo, o palhaço que animava as manhãs da criançada no SBT. Bom, acho que vocês sabem que o sujeito era alcoólatra, cocainomaníaco, sexualmente descontrolado e por aí vai. Mas um mestre em animar a garotada. A obra mostra o lado barra pesada daqueles tempos que tinham uma face oculta menos apresentável. Notas biográficas: quando criança achava Bozo o fim da picada, mudava de canal, meu sexto sentido já tinha farejado tudo. As primeiras canções da Legião Urbana já mostraram que as coisas não estavam tão bem assim. Em 1987 um professor do então ginasial alertava que a AIDS era Deus dando um jeito naquela palhaçada que eram nossos tempos. O rock deu lugar aos super-românticos sertanejos, vendendo horrores.
Espero que Bingo faça sucesso em sua trajetória. Vladmir Brichta está excepcional. O resto do elenco vai muito bem com destaque para Augusto Madeira, como o cameraman do palhaço. Se me permitem um reparo, me desagradou bastante o que todo mundo está admirando: o filme se baseia excessivamente na relação entre o pai palhaço e o filho.
A criança no caso representa o olhar reprovador de nossos tempos para aquela época. Como deixar um menino abandonado para privilegiar uma carreira meteórica em direção à fama? Em 2017, a gente problematiza esse tipo de atitude. Agora somos conservadores, até quem acha que está na vanguarda socialmente correta. Hoje vivemos um período em que todos querem casar, constituir família, inclusive os representantes das minorias. Não vejo mais por aí quem queira destruir o casamento ou a família como instituição. Até quem supostamente representa libertação prega algum tipo de enquadramento. Todos somos castradores.
Mas o que posso dizer, como alguém que vivenciou a época, é que quem de fato conseguiu captar o espírito daquele período, apesar dos excessos, se tornou uma pessoa mais tolerante. Os anos 80 salvaram uma geração da malice.
Confira aqui a programação.
Fabiano Lana é jornalista, filósofo, cinéfilo, colecionador de discos de vinil e colaborador da Se7e Cultura