- Marcelo Araújo
Viva a Miss Brasil Negra
Nunca me liguei em Miss Brasil. Não é o tipo de programação que me desperte interesse. Porém, nesta edição de 2017, um acontecimento me chamou a atenção: a vencedora, a jovem Monalysa Alcântara, é piauiense, nordestina e negra. Significa uma grande vitória não apenas pessoal desta linda moça, mas de uma população que ainda enfrenta racismo, preconceito, intolerância e discriminação, apesar de uma riqueza cultural fantástica, que nos projeta internacionalmente na música, no cinema, nas artes plásticas, na dança, no artesanato, na literatura, na gastronomia, na moda e em tantas outras expressões.
Em mais de 60 anos do concurso de Miss Brasil, desde 1954, apenas três negras conseguiram chegar ao pódio. A primeira afro-brasileira a conquistar o prêmio foi Deise Nunes, em 1986. Passaram-se três décadas até que Raissa Santana quebrasse o jejum e novamente uma candidata com esse perfil vencesse. Pelo segundo ano consecutivo, a circunstância se repete com Monalysa Alcântara.

Em um concurso que se define como retrato da mulher nacional destoa o fato de o grupo que representa mais da metade dos brasileiros aparecer tão pouco representado. Ao longo de sua trajetória, o Miss Brasil aponta hegemonia de vitoriosas brancas e das regiões Sul e Sudeste.
Se em um país como os Estados Unidos ou mesmo na Europa os conflitos étnicos se revelam claramente, aqui o racismo persiste disfarçado sob o manto da falsa democracia racial. Quanto mais se esconde esse caráter, menos se pode combatê-lo.
Até nossos dias, o país não quitou a dívida com os afro-brasileiros que persiste desde a abolição da escravatura. Embora livre, o povo negro seguiu marginalizado e em condições sociais desfavoráveis que permanecem até a atualidade.
Segundo estudo de 2015 da Secretaria Nacional de Juventude, da Presidência da República, no Brasil, um jovem negro tem 2,5 vezes mais chances de morrer assassinado do que um branco da mesma faixa etária. De acordo com dados de 2016 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), também do governo federal, na cidade do Rio de Janeiro os homens negros têm 23,5% a mais de chances de perderem a vida assassinados do que os brancos. A violência evidencia as desigualdades.
Não para por aí. Temos injúria racial e racismo em campos de futebol, como no caso recente do torcedor do Botafogo que ofendeu familiares do jogador Vinícius Jr., do Flamengo, durante a semifinal da Copa do Brasil; as agressões verbais contra a jornalista Maria Júlia Coutinho, o cantor e compositor Seu Jorge e a atriz Taís Araújo via redes sociais; o episódio deplorável do médico que xingou a moça que trabalhava na bilheteria do Cinemark, no shopping Iguatemi, em uma região de classe alta de Brasília; os incêndios criminosos em terreiros de candomblé, demonstrando a intolerância religiosa contra as crenças de matriz afro; o bullying contra crianças e adolescentes negros nas escolas. A lista de incidentes é longa, fazendo vítimas entre os famosos e os anônimos, que nem sempre conseguem se defender.
Avançamos muito nos últimos anos em termos de legislação, como a tipificação do crime de racismo na Constituição de 1988 e a entrada em vigor do Estatuto da Igualdade Racial, em 2010, instrumentos importantes para se punirem os racistas. No entanto, bastante precisa melhorar para virarmos de vez a lamentável página do racismo de nosso cotidiano.
Enquanto isso, vibro com a vitória da modelo Monalysa Alcântara. A gente se seguia via Instagram e eu nem sabia que ela participava do Miss Brasil. Que venham muitas outras glórias em uma longa carreira para uma pessoa que, como ela mesma contou na cerimônia do prêmio, sofreu muito para chegar a este momento. Parabéns!
Marcelo Araújo é jornalista, escritor e colaborador da Se7e. Autor do blog www.tijoloblog.wordpress.com. Publicou os livros Não Abra – Contos de Terror, Pedaço Malpassado, A Maldição de Fio Vilela, A Testinha de Gabá e Casa dos Sons.