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  • Marcelo Araújo

Ernane, toma logo essa abacatada que teu coleguinha já chegou com o Pelebol


Foto: divulgação

Ernane era um garoto legal e um dos melhores jogadores de Pelebol. Só quem tem mais de 40 anos vai lembrar deste brinquedo que fez muito sucesso na década de 70. Inventado na Inglaterra no fim dos anos 40 e conhecido lá fora como Subbuteo, ganhou no Brasil um nome para homenagear nosso jogador mais ilustre, Pelé, o Rei do Futebol. Era um campo com bonequinhos representando os jogadores, duas traves e uma bola.

O menino Ernane só não era muito chegado em abacatada, lanche que sua mãe gostava de lhe empurrar todas as tardes, condição sine qua non para descer e brincar com os amigos na rua. Porém, o garoto congelava de desânimo em frente à iguaria esverdeada, relutando em degustá-la. Quando tocavam a campainha, sua mãe, por sinal um amor de pessoa, vinha abrir a porta e gritava da sala para a cozinha, para desespero do filho: “Ernane, toma logo essa abacatada que teu coleguinha já chegou com o Pelebol”.

Cenas como essa hoje são raras. A meninada não joga mais nem Pelebol, nem futebol de botão e não brinca de pique-pega e esconde-esconde, clássicos lúdicos infantis até o começo da década de 80. Depois, vieram os videogames e tudo mudou. Atualmente, mal começa a andar e a molecada já se diverte com tablets e smartphones.

Longe de mim fazer o papel de saudosista. Odeio nostalgias do tipo “na minha época tudo era mais legal”, “antes as crianças sabiam se divertir de verdade” ou sei lá mais o quê. Não existe isso de uma geração pior ou melhor do que a outra. Cada uma sabe viver e aproveitar o seu tempo.

Não se pode demonizar ou endeusar as tecnologias. Em termos práticos, elas têm muito o que oferecer à formação intelectual de crianças e adolescentes. Especialistas atribuem aos jogos virtuais pontos positivos como estimular o comportamento empreendedor por meio da tomada rápida de decisões ou a facilidade de se adaptar a novos ambientes, a exemplo do que ocorre nas mudanças de fases de um game.

No Brasil da atualidade, pais também não possuem a mesma tranquilidade do passado para deixar seus filhos soltos na rua. Antigamente, era comum na época de férias, a turma ficar embaixo do edifício até dez, onze horas da noite, na maior farra. No presente, mesmo de dia, o fantasma da violência ronda as portas de casas e escolas, com sequestros, assaltos e balas perdidas que não poupam a vida de ninguém, nem mesmo a dos pequeninos. Há que se aprender a conviver com tamanho absurdo enquanto não se encontra uma solução para nos tornarmos uma sociedade civilizada.

O que acho interessante, em meio a este mundo moderno, não é cortar os aplicativos e sim permiti-los de maneira racional. Por que não estimular nos miúdos o gosto por atividades esportivas ou mesmo brincadeiras em casa e nas escolas, que, certamente irão contribuir para diminuir índices de obesidade, diabetes e hipertensão?

Não devemos esquecer também do papel da educação artística para despertar desde cedo a sensibilidade e uma inteligência com capacidade de abstração. Curiosamente, vivemos uma conjuntura em que, na contramão da sensatez, autoridades, de forma absurda consideram as artes manifestações descartáveis e querem tirá-las das grades curriculares. Um atentado contra a razão!

E por onde anda o Ernane? Não sei. Há mais de três décadas que não o vejo. Fico pensando se aprendeu a gostar de abacatada ou ainda faz cara de nojo quando se depara com o copo verde à sua frente. Toma logo isso, menino.

Marcelo Araújo é jornalista, escritor e colaborador da Se7e. Publicou os livros Não Abra – Contos de Terror, Pedaço Malpassado, A Maldição de Fio Vilela, A Testinha de Gabá e Casa dos Sons.


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